Uma mulher que trabalhava há 32 anos como empregada doméstica foi resgatada da residência de um pastor em Mossoró. Segundo auditores fiscais do trabalho, ela chegou ao local ainda adolescente, com 16 anos, e sofreu abuso e assédio sexual do empregador. Geraldo Braga da Cunha, da Assembleia de Deus, nega as acusações.
Uma denúncia anônima chegou ao Ministério do Trabalho e Previdência através da conta @trabalhoescravo no Instagram, mantida pelo Instituto Trabalho Digno. Uma equipe do grupo especial de fiscalização móvel, coordenada pela Inspeção do Trabalho em conjunto com o Ministério Público do Trabalho, a Polícia Federal e a Defensoria Pública da União, foi enviada para verificá-la na semana passada.
Constataram que Maria (nome é fictício para proteger a vítima) era responsável pelos serviços domésticos e recebia em troca moradia, comida, roupa e alguns presentes. Mas nunca teve salário ou conta bancária, nem tirava férias ou interrompia os afazeres nos finais de semana. A fiscalização considerou a ocorrência de trabalho forçado, condições degradantes e jornadas exaustivas.
“Famílias ‘pegam meninas para criar’, gerando uma relação de exploração. É uma prática comum na região, infelizmente”, explica a auditora fiscal do trabalho Gislene Stacholski, que atuou a investigação da denúncia.
O UOL procurou o pastor, apontado como empregador. Chamando a situação de “pseudo caso de escravidão doméstica e abuso sexual”, seus três advogados assinam nota negando com veemência as acusações. E afirmam que ele está à disposição da Justiça para esclarecimentos que provarão sua inocência.
Para a defesa, a fiscalização levou à imprensa “informações manipuladas que interessam apenas a quem acusa”, promovendo uma “ação midiática” em “data convenientemente próxima ao Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo” – que foi celebrado no dia 28 de janeiro.
‘Como se fosse uma filha’
A auditora Marina Cunha Sampaio, que coordenou a ação em Mossoró, afirma que o empregador, a empregadora e os quatro filhos discordaram da caracterização de trabalho análogo ao de escravo uma vez que, segundo eles, Maria era tratada ‘como se fosse uma filha’ desde que chegou à casa.
A família é de baixa renda e vive em uma casa humilde. A trabalhadora dividia os mesmos espaços com todos até que, na pandemia, o pastor e sua esposa se mudaram para a casa pastoral, na vizinha Açu, voltando, de tempos em tempos, à antiga residência.
“A despeito de uma filha também ajudar nas tarefas domésticas, a vítima prestava um serviço diário, cuidando da casa e ajudando na criação dos filhos do casal”, afirmou a coordenadora da operação. Maria desistiu de estudar antes de terminar o primeiro ciclo do ensino fundamental.
De acordo com a fiscalização, o casal nunca cogitou uma adoção formal da “filha”. O pastor chegou a avaliar, há alguns anos, que fosse pago um salário a ela, o que não aconteceu. Mas recolheram o INSS durante algum tempo. O que contribuiu para o reconhecimento de vínculo trabalhista.
Marina Sampaio diz que o pastor afirmou que teve um “relacionamento consensual” com a empregada e que partiu dele a iniciativa de procura-la. Mas em depoimento, Maria disse que tinha “nojo” do empregador e que fugia dele na casa. Abusos e assédios sexuais teriam durado dez anos.
“Ela não teria como consentir ou não com relações sexuais porque estava na situação vulnerável de alguém que é reduzido à condição análoga à de escravo. Consideramos que foram relações de abuso”, afirma a coordenadora da ação.
A auditora avalia que a família ficou sabendo que isso ocorria, mas manteve as aparências. “A empregadora ainda disse que perdoava a trabalhadora por conta da relação com o marido, ignorando a situação de exploração ao qual ela a submetia.”
Questionada sobre isso, a defesa do pastor rechaçou o que chama de “tentativa de impor condenações sociais antecipadas, baseadas em juízos de valor não submetidos ao crivo do contraditório”, e afirma que o assunto será tratado no “processo judicial”.
Também diz que “sob o argumento de sigilo utilizado pelos órgãos de fiscalização”, a defesa teve negados o acesso à integra dos autos. Reclama que “a equivocada versão apresentada, corresponde apenas à visão unilateral dos órgãos de fiscalização que, frustrados com sua tentativa de imposição de um acordo injusto, querem macular a imagem de nosso cliente”.
Até agora, não houve acordo para pagamento da trabalhadora.
Os salários atrasados e verbas rescisórias foram calculados em cerca de R$ 88 mil – parte da dívida já prescreveu. Além disso, o Ministério Público do Trabalho pediu R$ 200 mil em danos morais individuais para Maria, valor condizente com a baixa renda da família.
“Mas não houve acordo”, afirmou a procuradora do Trabalho Cecília Amália Cunha Santos, que fez parte da operação. Por isso, o MPT deve entrar com uma ação civil pública solicitando o pagamento.
Enquanto isso, ela foi para a casa de uma irmã e deve receber três parcelas do seguro-desemprego que é concedido, desde 2003, aos resgatados do trabalho escravo. Também será encaminhada a um centro que trata de violência contra mulheres.
Para a procuradora, no caso da escravidão no trabalho doméstico, o processo de libertação não termina com o resgate, mas começa com ele. Segundo ela, faz-se necessário um acompanhamento para que as mulheres ressignifiquem o seu papel nos locais que as exploraram. “Muitas criam uma grande dependência emocional com as famílias”, afirma.
Por Leonardo Sakamoto e Piero Locatelli